O queridômetro do brasileiro é posto à prova a cada edição de reality shows do país. O Big Brother Brasil que o diga! A novela da vida real, em sua 22ª edição, caminha para o fim e quem acompanha só pela TV pode até falar que este ano o BBB foi mais saudável que o ano anterior.
Sem “tretas” homéricas, o cenário de disputa se dividiu entre dois quartos. O Lollipop e o Grunge. Mas tudo caminha, até agora, bastante favorável para a turma do segundo, que vem surfando na onda do favoritismo e celebrando o retorno de cada paredão com saltos quase sempre ornamentais na piscina mais cobiçada do Brasil.
Mas a realidade para quem acompanha o programa pelas redes é bem menos saudável do que se imagina. A participante Linn da Quebrada, por exemplo, sofreu ataques desde o começo. Foi vítima de transfobia em um episódio do podcast Tarja Preta FM, chamada de “troço” pelos integrantes da bancada.
Leia um dos comentários, abaixo e envergonhe-se.
“Eu acho que tem que parar de chamar travesti de ela. Começa a chamar de ‘troço’ que aí ninguém vai reclamar. Se alguém me chamasse de ele, eu só iria falar assim: Não, eu não sou ele”, disse Bianca, uma das apresentadoras.
Nesse caso, tivemos alguma alegria e o mínimo sentimento de “justiça feita”. Transfobia é crime e o episódio foi retirado do ar. Mas o mesmo não aconteceu com tantos outros participantes (e pessoas próximas a eles).
Em fevereiro, após Arthur Aguiar vencer a Prova do Anjo, competição que lhe deu o direito de receber um vídeo da família, muitos internautas passaram a atacar a aparência de Sophia, filha do brother de apenas 3 aninhos.
Dentre as ofensas, muito se falava no Twitter que a pequena, que é filha de Arthur com Maíra Cardi, seria “filha de alguma traição”, devido ao histórico de “garanhão” do participante.
No final, ninguém está livre das agressões de uma parcela do público. Com ou sem favoritismo, cada participante ali sofre ataques gravíssimos de ódio dos chamados haters das torcidas adversárias. Comportamento que requer, no mínimo, que a gente converse com um bom especialista.
Reality shows e haters: qual a motivação para as agressões?
Para o psicólogo Mário Augusto Almeida (CRP 06/43.652), o comportamento das pessoas não acompanhou a velocidade das inovações, trazendo flagelos muitas vezes irreparáveis àqueles que ocupam espaços de alta exposição.
O especialista lembra que grande parte dos internautas foram educados em tempos analógicos, experimentaram o envio de cartas a entes queridos por correio, a comunicação por telefone e pager, dentre outros meios em que o diálogo contava apenas com dois agentes.
“A população não se educou para a comunicação em tempos tão ágeis. Há 20 anos, ela se detinha somente entre dois indivíduos; agora, com o surgimento da internet, a comunicação se dá de maneira instantânea e múltipla. Neste contexto, a exposição de alguém que se destaca se tornou muito mais frequente e intensa”, considera.
Em sua avaliação, haters têm, antes de tudo, uma série de pendências íntimas que se chocam ao se sentirem frustrados ou contrariados com as mais diversas situações.
“As manifestações de ódio na internet e nas redes sociais são somente reflexo da falsa impunidade da ausência do embate físico entre as pessoas. E estas trazem consigo, geralmente, muito mais do conteúdo interno não resolvido do agressor”.
Novos tempos (só que não!)
No bate-papo com o Dialogando, Mário compara o fenômeno hater a tempos remotos, vividos muito antes do advento da internet. A exemplo do Coliseu de Roma. O anfiteatro, construído entre 68-79 d.C, tinha capacidade para abrigar entre 50 mil a 80 mil espectadores e era usado para espetáculos públicos em que os combatentes eram animais ou pessoas – neste caso, os gladiadores.
Os primeiros combates disputados para comemorar a conclusão do monumento duraram cerca de 100 dias e estima-se que, só nesse período, centenas de gladiadores e cerca de 5 mil animais ferozes tombaram mortos em sua arena de 85 por 53 metros. Jogos de execução que levavam o público a total delírio.
“Se levarmos a discussão para a construção das análises pessoais, há relação direta dos reality shows – entretenimento que confina pessoas para serem julgadas por telespectadores – com os frequentadores do Coliseu, há mais de dois mil anos. Para os participantes, o julgamento e a morte, hoje simbólica (cancelamento), impostos pela massa furiosa e as regras do programa”, analisa o psicólogo.
[Saiba mais sobre a cultura do cancelamento no post]
Para ele, também assemelha o comportamento de ódio às perseguições muito comuns nos tempos de ouro das rádios, agora remodeladas por meio da perigosa disseminação de notícias falsas.
“Os tempos modernos trazem fortes características de outras perseguições históricas, a exemplo da exposição de pessoas em canais públicos, entregues a qualquer ataque com origem nos programas de rádio por meio de falsas notícias, o que hoje chamamos de fake news. Também podemos relacionar com a confusão feita por telespectadores de folhetins televisivos e os atores que desempenhavam papéis de vilões nestas obras, geralmente agredidos nos ambientes que frequentavam no dia a dia”.
[Entenda os desafios do combate às fake news no webcast]
Alvos da fúria hater
Quando falamos em haters e suas vítimas, quase sempre pensamos na violência que mira grandes personalidades do mundo dos famosos, dentre outros perfis públicos. Mas a violência gratuita não atinge apenas esses grupos e, segundo o especialista, os gargalos emocionais promovidos pela pandemia farão novas vítimas de ódio e violência gratuita.
“Vivemos em tempos em que as lideranças motivam ações violentas, as escutas interpessoais estão contaminadas por muitas questões de desigualdade social, nada que no mundo ‘normal pré-pandemia’ não acontecesse. Agora, ao final do processo pandêmico, as questões de saúde se exacerbaram para além do desejado no suposto ‘novo normal’. E, como o normal nunca existiu, teimo em acreditar que é impossível normalizar o inexistente”.
O seu papel no combate à fúria
Todo embate requer o comprometimento de quem usa as plataformas digitais e busca torná-las mais saudáveis e democráticas. Por isso, Mário convida os internautas a adotarem novas posturas digitais.
“Percebendo tratar-se de manifestação gratuita de ódio, é um dever denunciar nos canais onde a manifestação foi propagada. Havendo sinais claros de crime, é necessário acionar as autoridades policiais. Em relação às vítimas, nosso papel é sermos solidários a elas. Se tiver alguma conexão mais próxima, ofereça o seu acolhimento, fortalecendo-as.”
Você já sofreu algum ataque gratuito nas redes ou esteve próximo de alguma vítima? Compartilhe com a gente nos comentários e conte como pode ajudar outras pessoas com base nessa triste experiência.
Mudanças de comportamento e cultura para o uso consciente da tecnologia são possíveis, mas requerem a dedicação e o comprometimento de cada um de nós!